terça-feira, 22 de novembro de 2011

Ensina-me a Viver

Vicky Tavares
São dois irmãos, ambos portadores do vírus HIV. Infelizmente quando a mãe descobriu que tinha o vírus e as crianças também, já era tarde demais. Uma das crianças já tinha perdido a visão, a fala e já não andava. Graças a Deus o outro não!

Vou chamá-los de Pedro e Paulo. Paulo é muito inteligente, apesar de seu desenvolvimento físico ser lento, ele é ágil e muito capaz. É apaixonado pelo irmão, cuida dele com muito carinho. Quando os conheci percebi que ninguém dava atenção para o Paulo, por causa das dificuldades de Pedro, por ele inspirar tantos cuidados as pessoas se voltam sempre só para ele.

E aqueles olhinhos negros do irmão ficavam sempre tristes. Sabendo disso passei a me dedicar mais a Paulo. Somos grandes amigos, sempre me escreve cartas de amor e adora estar ao meu lado. Na instituição está sempre feliz. Lá é tratado com respeito e dignidade. Pedro é um eterno apaixonado e adora música. O único sentido que tem é a audição e a explora demais com o radinho no ouvido, pula e dança o tempo todo, ah... adora cantar parabéns para você! É muito meigo e entende muita coisa.

Sua mãe é uma pessoa muito triste, carrega a dor de ver seu filho com tantas limitações e deve se culpar. Pelo menos passa isto para quem a conhece. É jovem ainda, casou de novo e o atual marido é um bom pai para os meninos. É uma família tranqüila que luta pela sobrevivência. Sem dependências químicas, graças a Deus! 

Estão conosco em regime sócio educativo, não são abrigados. Alguns finais de semana dormem na instituição. Pedro e Paulo adoram ficar ali com os amiguinhos. Quando o pai chega à porta da instituição o Pedro já começa a pular e a gritar todo feliz! Impressionante o amor que todos da casa têm por ele. Os cuidados, a proteção e toda a atenção quando ele chega.

As crianças são muito unidas. Lembro-me quando eram menores e brigavam, eu chamava e fazia com que todos se abraçassem. Perdão é a palavra chave no Vida Positiva. Pedro nos preocupa, nos últimos meses tem tido convulsões. Por não gosta de adoecer fica irritado.

Percebo o quanto ele gosta de viver e se alegra com a vida, sente vontade de ficar aqui nesta vida. Isso me faz pensar que tantas pessoas perfeitas, com condições físicas e mentais excelentes, por qualquer coisa querem desistir. Com certeza nosso Pedro daria a vida para estar no lugar delas. Não gosta da cadeira de rodas e quer andar. Como não consegue, engatinha pela casa toda. É um guerreiro que luta para vencer suas limitações. Agarra-se com todas as forças no futuro, esperando por dias melhores. É amigo da esperança. Vencer obstáculos é com ele mesmo. Quando olho para o menino de corpo deformado e de espírito gigante, agradeço a Deus e ao Mestre Pedro por me ensinar a viver!


terça-feira, 15 de novembro de 2011

Um Anjo Amigo

Vicky Tavares
A pedidos dos netos e amigos vou contar como começou minha relação com o HIV. Na década de 80 a AIDS estava no auge. Ainda não havia remédios (coquetel) e milhares de pessoas morriam com doenças oportunistas do vírus. O mundo em estado de choque assistia umas das piores epidemias do século.

Naquela época diziam que era a doença dos homossexuais. Assisti o descaso da sociedade com essas pessoas, muitas vezes abandonados pela família morriam sozinhos em seus leitos de hospitais.

Em uma tarde ensolarada fui ao salão cortar meu cabelo. Lá me informaram que estavam tentando falar comigo para avisar que meu cabeleireiro estava doente e não poderia me atender. No dia seguinte liguei para marcar outro horário, mas disseram que  ele continuava mal. Depois de uma semana de tentativas em vão, resolvi procurá-lo em sua casa, foi assim que descobri que meu amigo havia contraído o vírus HIV. Estava abatido e abalado, queria reagir, mas faltavam forças, estava envergonhado e humilhado.

Todos o desprezavam, sofria com o vírus e com o preconceito horroroso. Passei a visitá-lo frequentemente. Não tinha mais amigos. Aquele homem famoso, que curtia as pontes aéreas mais importantes para fazer a cabeça das mulheres mais badaladas do Brasil, estava só! Sem ninguém. Foi então que a família se aproximou. Uma irmã maravilhosa largou tudo para cuidar dele. A mãe morava em outra cidade. Ele não queria sair de Brasília, ainda acreditava que tinha amigos. Ás vezes me pedia para ligar para as clientes, elas davam desculpas para não atendê-lo, eu ficava numa situação constrangedora e sempre inventava alguma coisa para não magoá-lo.

Ele começou a definhar, as escaras começaram a aparecer e a cada dia estava mais debilitado. A irmã e eu resolvemos que seria melhor mandá-lo para junto da mãe. Um dia me ligou que queria vir a Brasília. Hospedei-o em minha casa. Todos ficaram perplexos, amigos e parentes me chamavam de louca. Imagine hospedar um portador do vírus em casa, com a família! Para todos era um absurdo! O recebi com  muita alegria. Estava com saudades.

Neste mesmo dia soubemos da morte de um amigo com AIDS. Fomos ao enterro, observei que meu amigo ficou por muitas horas olhando para o nada. À noite o convidei para ir a igreja comigo. Quando o Pastor convidou os presentes para aceitar Jesus, orgulhosa o vi  levantando a mão e indo até ao altar receber o Espírito Santo de Deus. Voltamos para casa. Meu coração estava aliviado. E vi que ele estava em paz. Voltou para sua mãe. Dias depois me ligou, já não conseguia falar direito, as feridas estavam por toda a parte do corpo, inclusive na garganta.

Estou escrevendo nesta tarde chuvosa de novembro, vendo a água cair pelas janelas e me lembrando do seu sorriso, do amor que eu tinha por ele e ele por mim. Para mim foi uma honra tê-lo como amigo. Dividimos copos, talheres, pratos, abraços e beijos, quando todos temiam fazê-lo.

Dias depois recebi a  notícia do seu falecimento. Ali naquele momento tinha a certeza no meu coração  que iria lutar para combater o preconceito/AIDS. Depois disso acompanhei os últimos momentos de vários portadores em hospitais de Brasília. Estas pessoas só queriam segurar nas mãos de alguém, ganhar um abraço e um beijo antes de partirem. Só isso! Tão pouco...

Agradeço a Deus e ao meu anjo amigo pela oportunidade de servir ao meu próximo, com o amor que Cristo nos ensinou. Anos depois Deus me fez um chamado, trabalhar com crianças e adolescentes portadores do vírus HIV.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Laços de Família

Vicky Tavares
O Conselho Tutelar os encaminhou para uma instituição religiosa perto da cidade deles, mas lá não sabiam como cuidar do HIV. Foi então, que a médica infectologista  indicou o Vida Positiva. Fui com a Assistente Social  buscá-los. A menina tinha HIV, o menino mais velho não e o recém nascido, ainda não sabíamos. Ela já veio com febre, foram duas semanas muito difíceis. Ela tossia demais, o irmão mais velho não parava de chorar (berrando mesmo) e o bebê dando trabalho comum de um recém nascido.

Aqui vamos usar o nome fictício de Luana para a menina, era uma bonequinha, branquinha, cabelos negros bem lisos, narizinho arrebitado e bem manhosa. Os dois irmãos eram muito lindos, um mulato e outro negro.

Imaginei que eram filhos de pais diferentes. Logo que chegou ela teve de ser internada com pneumonia (doença oportunista do HIV) e ficou muito fraca. Foi uma recuperação árdua. E o pior de tudo isso, é que as crianças estavam bastante sofridas e apavoradas com tudo e com todos, pois antes de virem para a instituição tinham sidos encontrados ao lado da mãe dias após sua morte por overdose. Foram os vizinhos que sentiram o mau cheiro e chamaram o Conselho Tutelar.

Muita dor e abandono. A adaptação deles na instituição foi complicada. O mais velho tornou-se agressivo, não gostava dos funcionários e só se acalmava comigo. Tivemos que  deixá-lo morar com a avó. Os dois irmãos ficaram. Sempre que faço feijoada, lembro dele pedindo os pedaços de bacon. Adorava tênis bem grande, que davam dois dos pés dele. Tinha o sorriso muito maroto. Deixou saudades.

Fizemos os exames no menor até um ano  e meio. Graças à Deus negativou. Luana recebendo o tratamento adequado começou a se recuperar. Na escola era uma excelente aluna, valia à pena ver seus cadernos. Teve catapora e tivemos que interná-la, ficou no isolamento por alguns dias. Sempre fui presente nestas internações, sei que ninguém substitui a mãe, mas o amor é fundamental para a recuperação de qualquer enfermidade. Ela logo ficou boa. Mais uma vitória! Foram 5 anos de convivência com estas duas pessoinhas maravilhosas.

Ele todo dia que chegava da escola ficava pelo menos uma meia hora tomando banho de sol e pensando. Eu sempre o observava, mas nunca perguntei o que tanto  pensava. Depois se levantava e ia almoçar. Muito inteligente sabia manusear o computador como ninguém. Com 5 anos encarava a vida com realidade.

Ela cada dia mais vaidosa não tinha mais feridas no corpo e crescia cada vez mais bonita. Um dia, um telefonema com um comunicado: “Estavam indo para adoção”. Um casal estava interessado. Foi tudo tão rápido. Ela teve dificuldades em aceitar aquela nova situação. Ele não, todo animado curtia o casal como se já conhecesse ha muito tempo. Dentro de mim uma confusão de sentimentos. Por um lado estava feliz por outro infeliz.

Um mês depois daquele dia eles foram embora. Era o aniversário de Luana e eu não quis assistir a saída deles. Fiquei em casa chorando. Sabia que seria bom para eles encontrarem uma família, mas era parte da minha que estava indo embora. Sei que deveria encarar este trabalho de outra forma. Mas uma onda de amor tomou conta do meu coração e eu os vejo como filhos, netos, enfim minha família! Perto do Natal do ano passado, vi uma mensagem deixada por eles no antigo site da instituição- Vóvo Vicky nós te amamos!

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Preconceito, doença da alma

Vicky Tavares
Infectado com HIV por transmissão vertical (mãe para filho), chegou ao abrigo muito pequeno e com muitas dores no ouvido. Em sua casa dormia em chão batido e sem cama e sem colchão. A friagem causou uma otite aguda e crônica. Por muito tempo tratamos do ouvido, mas infelizmente vai ter que operar porque perfurou os tímpanos. Já está com uma significativa perda de audição. Fizemos os exames e estamos aguardando pela cirurgia.

Veio acompanhado do irmão mais velho, que o orienta e protege. Seu irmão é corredor de rua, já ganhou várias medalhas e está na lista dos corredores de elite. O irmão é um jovem tranquilo que não me dá trabalho, tímido e bastante reservado, ao contrário dele que é super alegre e brincalhão.

Ele adora desenhar plantas de residências, sente falta da mãe já falecida, tanto é que sempre está arrumando uma mulher para chamar de mãe. Um dia desses nos assustou, teve que ser internado com uma crise de apendicite e operar. No hospital era todo sorrisos. Sempre está de bem com a vida! 

O pai também portador tem a saúde bastante debilitada, um homem de 1.86m que já chegou a pesar 35 kg. Visita sempre os filhos. Existe muito afeto entre eles.

Vivemos várias situações constrangedoras. Uma delas foi quando fazia tratamento com uma psicóloga. Fomos chamados  com urgência. Quando lá chegamos encontramos ele sentado, com a mão direita coberta por um saco plástico. A psicóloga pedia que  o retirássemos imediatamente porque estava com o dedo machucado. Era apenas uma bolinha de sangue pisado... Ficamos perplexos com a atitude dela! Lógico que ele nunca mais voltou naquele lugar. Ficou muito triste, e várias vezes o vi chorando. Conversei bastante com ele e expliquei que essas pessoas são doentes, mais doentes que qualquer outro.

Sempre foi tratado com discriminação, o preconceito o persegue. Seus dentes eram desalinhados, orelha grande e um barrigão que chamava atenção. Hoje usa aparelho para corrigir os dentes, faz musculação, e o barrigão, virou um tanquinho.

Uma vez quando brincava com uma colega de classe o pai da jovem viu e começou a bater nele, pedindo que nunca mais brincasse com a filha dele! Fui chamada na escola, saí de lá chorando, revoltada. Viemos abraçados sem dar uma palavra. Resolvi denunciar, mas quando estava saindo da instituição ele me chamou e disse- Vó Vicky, não faça isso! Deixa pra lá. Já orei por ele e Deus colocou no meu coração o perdão.

Acompanho seu crescimento com grande alegria, está bastante desenvolvido, não só fisicamente, mas com uma alma grande, muito grande!