sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

Will Smith

Vicky Tavares
Quando ele chegou à instituição estava muito revoltado. Nos primeiros dias chorou muito e não queria amizade com ninguém. Só falava em morar com a avó porque estava com saudade do irmão mais velho que morava com ela. Fui buscá-los numa cidadezinha de Goiás. Tinham sido encontrados pelos vizinhos sozinhos em casa com a mãe morta. Avisaram ao Conselho Tutelar e eles encaminharam para uma instituição religiosa.

 A mãe sofrera uma overdose. Dependente química das mais variadas drogas não resistiu deixando 4 filhos, cada um de um pai diferente. A irmã portadora do vírus HIV não estava tendo o tratamento adequado e foi assim que eles foram encaminhados para o Vida Positiva. Em seguida a menina internou com pneumonia, mas com o uso do coquetel no horário britânico ela foi  se recuperando e  com o tempo estabilizou sua carga viral.

Os irmãos o chamavam de pai e ele assumia muito bem o papel. Tratava-os com amor e muito carinho. Vou chamá-lo de Will Smith pela semelhança física e trejeitos que tinha com o ator americano. Não gostava de estudar, era muito inteligente, mas tinha preguiça de fazer os deveres, não gostava de regras e era totalmente independente. Acredito que foi criado dessa forma, até mesmo pela necessidade de sobrevivência.

 Todo dia enfrentávamos dificuldades com nosso Will, batia nos coleguinhas (menos nos irmãos), nas funcionárias e não respeitava nada nem ninguém. Tinha muito carinho por mim e eu por ele. Sempre me pedia para levá-lo para a casa da avó para ficar com o irmão mais velho. Eu ligava insistentemente para a avó para vir visitá-los junto com o irmão, mas não conseguia convencê-la. Ela sempre tinha uma desculpa. Dizia estar com problemas com o marido, que não tinha dinheiro e etc. Oferecemos pagar as passagens, mas mesmo assim apareceu apenas duas vezes.

Cada dia ele ficava mais revoltado.Um dia fui surpreendida com um telefonema desesperado da funcionária da instituição, ele havia feito um escândalo e com uma faca na mão ameaçava tudo e todos. Foi assim que conseguiu com que eu o levasse para passar uns dias com a avó e o irmão. Algumas semanas depois a avó ligou dizendo que ele ia ficar com ela. Fui uma vez visitá-lo e levar alguns mantimentos, mas ele não estava, tinha saído com o irmão.

Depois desse dia nunca mais soube notícias. Mudaram de endereço, de telefone, enfim, sumiram. Os irmãos foram adotados, estão felizes com a nova família. No final do ano de 2011, uma de nossas voluntárias nos deu uma notícia lamentável. Viu Will na Praça do Relógio em Taguatinga totalmente dominado pelo crack, perambulando para um lado e para o outro, desorientado, como zumbi mesmo! Depois o viu novamente rondando a casa onde a instituição funcionava. Hoje deve ter 13 anos. A diferença dele para o ator americano é que um faz o povo rir e ele infelizmente nos fez e faz chorar!


quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Shirley

Vicky Tavares
Tinha o cabelo todo enroladinho, olhos graúdos, era bem brejeira, tinha um sorriso permanente estampado no rosto, era muito inteligente e surpreendia com suas frases de efeito. Conheci Shirley quando tinha apenas 5 anos. Portadora do vírus HIV, falava com naturalidade sobre isso. Corajosa, enfrentava qualquer situação.

Tinha pequena estatura e uma família problemática. A mãe se drogava, prostituía-se, roubava e frequentemente ia presa. A avó tinha câncer, usava muletas e reclamava demais dos filhos e da vida. O irmão de 17 anos, quando descobriu que tinha HIV se matou. A mãe de Shirley não se conformava. Sofria demais pela perda do filho. Todo final de semana ia buscar a menina na instituição. Ficávamos na sala horas e horas conversando.

Coitada. Era uma sofredora! Moravam no Recanto das Emas em uma casa que tinha no meio um esgoto a céu aberto, dois quartos de chão batido, assim dormiam e viviam. O fogão era imundo, as panelas destruídas, um horror! Ela juntava latinhas para vender. A filha roubava o dinheiro dela para se drogar e isso a deixava indignada.

Rolava muitas brigas, uma guerra. Shirley era decidida quando via que as coisas estavam feias por lá, logo me dizia- não vou para a casa dela. Vou ficar aqui, se eu for vou ficar na rua porque não agüento briga.

A mãe engravidou e veio outra menininha, o pai e a família dele começaram a lutar pela guarda da menina. Enquanto isso a bebê ficou também sob os nossos cuidados. O pai era bem responsável visitava frequentemente a filha e aproveitava para falar mal da ex e da mãe. Depois de alguns anos a mãe foi buscar Shirley e a bebê e nunca mais voltou.

Meses depois tivemos a notícia que havia falecido. Não se cuidava, não estava nem aí para o coquetel. A mais novinha ficou com o pai e nossa brejeirinha foi para outra instituição, hoje deve estar com 12 anos. Não tive mais noticias dela. Soube que a vovó também faleceu do câncer e que a casa tinha ficado com um dos filhos. São coisas assim que acontecem desse outro lado do rio.

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Medo

Vicky Tavares
Portador do vírus HIV tinha grande dificuldade de desenvolvimento. Os 5 anos de Marlon pareciam 3. A mãe  já havia entregado a filha mais velha para o pai, que também é portadora do vírus.  Resolveu ficar com Marlon porque o pai não o aceitava. Não acreditava que ele fosse filho dele, colocou na cabeça que a mulher o traía. Desconfiava de Joana e a odiava.

Linda, inteligente e educada ela me explicou não ter condições de criar Marlon. Tinha medo que ele morresse, pois era muito fraquinho mesmo. Não falava quase nada, era muito tímido e reservado. Interessante que comia bem e era muito capaz. Nos estudos não nos dava nenhum trabalho e nunca recebíamos reclamações da escola sobre seu comportamento.

Todo final de semana ela ia buscá-lo e trazia aos domingos à noite. Era responsável com o filho. Dava os remédios na hora certa e sempre passava todas as informações do infante. A criança ficou alguns anos na instituição. De vez em quando adoecia, sua saúde era debitada. Sua carga viral não baixava e isso me era preocupante.

 Algum tempo depois veio a notícia que Joana estava grávida. Marlon ficou feliz, pois iria ganhar um irmãozinho para brincar nos finais de semana. Ela fez o Pré-Natal certinho. Tomou o coquetel religiosamente, fez parto cesárea e tomou todas as providências para que seu filho (sexo masculino) nascesse sem o vírus. E, deu certo.

Joana era apaixonada pelo pai da criança, mas ele tinha um relacionamento com outra pessoa e por conta disso brigavam muito. Marlon nem mais queria ir os finais de semana. Acho que algumas vezes o pai bateu na mãe.

Depois do nascimento, a criança ficou com Joana. Ela se dedicava muito ao filho menor. Notei que Marlon ficava enciumado. Entristecia-me muito o fato dela colocá-lo para cuidar do bebê. O irmão foi crescendo e cheio de energia dava trabalho demais a todos. Quando ia buscar o filho levava sempre o garotinho que em segundos derrubava tudo na casa. Nosso Marlon ficava correndo atrás dele e era impressionante o amor, a paciência e a dedicação que tinha com o irmãozinho.

Bem, chegou o dia da reintegração familiar. Gostava de ficar na Casa, se despediu de mim com os olhos assustados e cheios de lágrimas. Toda consulta das crianças e adolescentes do Vida Positiva eu acompanho e numa dessas idas perguntei para a médica infectologista se tinha notícias dele. Fiquei sabendo que mudou de Brasília. Ele está em minhas orações. Seu corpo magrinho, franzino, sua voz rouca e seu medo pela vida estarão para sempre em minha memória!

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

O Boneco

Vicky Tavares
A mãe e o pai ambos portadores do vírus HIV, dependentes químicos de todo tipo de droga, viviam presos. Ela e uma amiga roubavam em lojas de departamentos e já eram conhecidas da polícia. Os filhos, duas meninas e um menino ficavam com uma tia. Vinham pela manhã e voltavam à noite para a casa. Tinham grande dificuldade para estudar, principalmente a mais velha. Ficaram dois anos conosco. O primeiro a sair foi o menino de sete anos. Foi morar com o pai em uma de suas saídas da cadeia.

Logo fiquei sabendo que já era "aviãozinho" trabalhando para os traficantes. Era moreno, de olhos bem graúdos, forte e triste. Alguns meses depois já estava pele, osso e se drogava. O crack é uma epidemia que tem crescido muito no Brasil, tem jogado vidas e mais vidas na sarjeta, tem destruído famílias e muitos jovens e crianças têm virado refém do vício.

Eu que sempre vivi do outro lado do rio nunca pensei que isso acontecesse. Uma realidade cruel demais. Difícil de acreditar. A menina mais velha tinha péssimos costumes. Pegava o que não lhe pertencia, mentia com muita facilidade e adorava se insinuar para os meninos. Ficava muito preocupada com ela porque no fundo ela era uma criança.  Adorava brincar com bonecas, penteava o cabelo delas e fazia comidinhas nas panelinhas de brinquedo. As duas irmãs eram muito bonitas, altas, louras com olhos bem claros, puxando para o verde e chamavam atenção.

Por conta desse vai e volta das prisões dos pais que a tia resolveu tirar as meninas da instituição. Ana logo se apaixonou por um traficante e foi morar com ele. Em seguida engravidou com apenas 12 anos. Ia brincar com um boneco de verdade. A outra ficou com a tia onde está até hoje!

O pai sempre aparecia para me pedir mantimentos, completamente bêbado e drogado. Tomava todo tipo de medicamentos: gardenal (remédio que age no sistema nervoso central utilizado para prevenir aparecimento de convulsões), beladona (planta medicinal indicada no caso de problemas do sistema nervoso), misturava com bebida alcoólica “para ficar doidão”, dizia. Era um rapaz muito bonito. Com tanta loucura que curtia foi ficando deformado.

Tinha dias que ia para a porta do Vida Positiva me esperar e começava a gritar com os funcionários. Então tomei uma decisão de não ajudá-lo mais. Pedi  então que mandasse sua namorada ir pegar as cestas básicas. Depois de algum tempo eles sumiram. Não sei se estão vivos. De Ana tive notícias. Esteve presa várias vezes. Deixou o menino com a família da mãe. Soube que  tanto ela quando o irmão perambulam pelas ruas como zumbis, cometendo pequenos furtos para manterem o vício do crack. Quando me lembro deles sinto uma grande tristeza no meu coração.